Caso estivesse viva, Clarice Lispector completaria, hoje, 92 anos. Sem dúvida, é minha escritora favorita. Abaixo, o trecho do livro que marcou, de alguma e de todas as maneiras, o meu percurso como leitora:
Ouve, por eu ter
mergulhado no abismo é que estou começando a amar o abismo de que sou feita.
A identidade pode ser perigosa por causa do intenso prazer que se tornasse
apenas prazer. Mas agora estou aceitando amar a coisa!
E não é perigoso, juro que não é perigoso.
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos.
Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa só é fulminada pela doçura
quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é que é o dom, e
poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de perdição, agora
eu sei: o estado de graça é inerente.
– Escuta. Eu estava
habituada somente a transcender. Esperança para mim era adiamento. Eu nunca
havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque
é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me
acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro, eu
acreditava tão pouco no que existe que adiava a atualidade para uma promessa e
para um futuro.
Mas descubro que não é
sequer necessário ter esperança.
É muito mais grave. Ah,
sei que estou de novo mexendo no perigoso e que deveria calar-me para mim
mesma. Não se deve dizer que a esperança não é necessária, pois isto poderia
vir a se transformar, já que sou fraca, em arma destruidora. E para ti mesmo,
em arma utilitária de destruição.
Eu poderia não entender
e tu poderias não entender que prescindir da esperança – na verdade significa
ação, e hoje. Não, não é destruidor, espera, deixa eu nos entender. Trata-se de
assunto proibido não porque é ruim mas porque nós nos arriscamos.
Sei que se eu abandonar o que foi uma vida toda organizada pela
esperança, sei que abandonar tudo isso – em prol dessa coisa mais ampla que é
estar vivo – abandonar tudo isso dói como separar-se de um filho ainda não
nascido. A esperança é um filho ainda não nascido, só prometido, e isso
machuca.
Mas sei que ao mesmo
tempo quero e não quero mais me conter. É como na agonia da morte: alguma coisa
na morte quer se libertar e tem ao mesmo tempo medo de largar a segurança do
corpo. Sei que é perigoso falar na falta de esperança, mas ouve – está havendo
em mim uma alquimia profunda, e foi no fogo do inferno que ela se
forjou. E isso me dá o direito
maior: o de errar.
(de A paixão segundo G.H.)