Que férias e chuva não fazem uma
boa combinação, disso sei há muito tempo, desde que precisei da rua para me
divertir, estando nela ou usando-a para seguir viagem. Antes de viajar para
Conceição da Barra ou para Itaipava – a escolha era sempre um ou outro canto
praiano – passava alguns dias batalhando uma diversão com os colegas da rua,
que era metade asfalto, metade terra e paralelepípedo. E, se os colegas eram da
rua, era porque ali tudo se transformava em campo de futebol (ou de bolinha de
gude), em sessão de cinema a céu aberto ou em show de música com nossos
próprios talentos. Ou, ainda, em campeonatos de pipa.
Mas a natureza de vez em quando
pede passagem, em sinal de apelo ou alerta, para não ser desfeita a sua graça.
E, por isso, enxurradas são capazes de lavar até o mais imundo canto,
esborrando água e mais água, em pleno período festeiro de férias e final de
ano. Um aviso? O lado de fora encharcado, a rua era então improvisada do lado
de dentro. Tudo era motivo para que o tempo não se escorresse como a chuva na
janela.
Numa dessas, veio-me a ideia de
soltar pipa dentro de casa. Porque se quer, então se faça. Uma pipa adaptada, é
verdade, mas era a minha pipa uma sacola de plástico manipulada por um
barbante. E o vento? Escutava-o quase derrubando as árvores com o auxílio da
chuva e isso já era suficiente. Assim, tudo estava pronto: minha pipa era
amparada pelo varal de roupas da mãe e eu me sentava no chão de piso vermelho
da área de serviço. Ouvia a chuva formar cascata no telhado do quintal, o vento
soprar a ponto de respingar gotas no rosto, como se estivesse lá fora, debaixo
daquele filete engrossado de chuva.
Se nunca tomei banho de chuva?
Vários, a perder o couro. Mas a sinfonia das águas escorrendo nas calçadas e
nos telhados tem de ser ouvida, por vezes, na calma de chão, imaginando
gigantes pisando na terra molhada, provocando estrondos no céu. Aproveitando
que no tempo da infância não se reconhece que famílias são afetadas por tamanho
desabamento chuvoso.
Pingo a pingo rasgaria a seda da pipa. Mas não a minha, que era de plástico. E, mesmo assim, ela voava longe, ainda que dividindo o espaço com roupas por secar. Naquele voo, eu fechava os olhos para ouvir ainda mais a pipa voando no céu ora cinzento, ora amarelado. O teto que era céu, o varal que era vento, o barbante que era rabiola, a sacola que era papagaio. A chuva que era inspiração.
Pingo a pingo rasgaria a seda da pipa. Mas não a minha, que era de plástico. E, mesmo assim, ela voava longe, ainda que dividindo o espaço com roupas por secar. Naquele voo, eu fechava os olhos para ouvir ainda mais a pipa voando no céu ora cinzento, ora amarelado. O teto que era céu, o varal que era vento, o barbante que era rabiola, a sacola que era papagaio. A chuva que era inspiração.
Que texto bonito, Sarah. Lembrei da minha infância, quando brincar/dançar na chuva era normal, quando a lama não incomodava (pelo contrário, era até divertido sujar a roupa), quando não havia pressa nem estresse, quando andar de bicicleta na chuva, ficar olhando pro alto de boca aberta, esperando os pingos molharem a garganta era o programa do dia.
ResponderExcluir[é uma pena que a gente tenha agora outro sentido para essas chuvas de final de ano.]
Sarah, que lembranças tão bem desenhadas. "Porque se quer, então se faça." Lembranças úmidas dessas chuvas inocentes da infância - nunca apreendemos o que representa a chuva de perigo quando somos crianças. Uma crônica com banho de chuva e pipa pendurada no varal com direito a toda imaginação e fantasia do mundo. Claro que é um belo texto, tinha de decantar não, está pronto, sem tirar nem pôr. Saudosismo sem saudade, sem pieguice. Sua prosa me enche de alegria.
ResponderExcluir